Noite é um relato melancólico escrito em 1955 pelo brilhante escritor judeu Elie Wiesel, radicado nos Estados Unidos até a sua morte, em 2016. Noite é o primeiro livro de uma série escrita por Wiesel e também o livro que inaugura o gênero de memórias das obscuridades praticadas nos campos de extermínio de Auschwitz e em tantos outros lugares que o próprio Wiesel chamou de “usinas de morte”. Wiesel era um adolescente de 15 anos quando esteve em um campo de concentração nazista, testemunhando os horrores daquela ideologia. Ele perdeu a mãe, o pai e a irmã mais nova. Acabou por reencontrar, em um orfanato na França, suas duas irmãs, únicas sobreviventes de sua família. Noite é um livro que, de fato, antes nunca tivesse sido necessário. Não é fácil concluir certos parágrafos da obra. Os relatos sobre a forma como ignorou o pai por pavor dos soldados da SS, as notícias cruéis sobre fornalhas, valas de corpos, extermínio de bebês e o desinteresse de seus patrícios ortodoxos encarcerados pelos rituais judaicos são dolorosos. Wiesel nunca conseguiu lidar bem com as lembranças daquele sofrimento imensurável e injustificável. Em uma entrevista no Brasil, o escritor concluiu: “Hoje eu tenho fé, mas uma fé ferida. Não é a mesma fé que eu tinha antes” (Roda Viva, TV Cultura, 2001).

“Por que essa má vontade toda contra mim?” é a melhor paráfrase de Jó 10:17-18. O renomado autor americano, Philip Yancey, em seu controverso Decepcionado com Deus, sugere tal paráfrase como a égide do desespero sincero de Jó. A dor, a injustiça, o medo, o nunca-mais foram circunstâncias que levaram Wiesel a se perguntar: “Por que haverei de bendizê-lo?”

Em A Anatomia de uma Dor, por desalento e talvez por breve perda de fé, C. S. Lewis escreveu, mergulhado em melancolia e desânimo: “Quando nos voltamos para Deus em profunda necessidade, quando toda outra forma de amparo nos foi inútil, [recebemos] uma porta fechada na cara.” Fato é que, antes de A Anatomia de uma Dor, Lewis escrevera o magnífico e filosófico O Problema do Sofrimento. Que livro bom! Mas, após perder a esposa Joy numa luta contra o câncer, o irlandês reconheceu que a noite da alma é muito mais escura do que supunha a sua vã filosofia.

É mesmo chocante! “É blasfêmia fazer perguntas sinceras a Deus quando a calamidade se instala no centro da vida?”, foi a pergunta de uma mãe que perdera seu único filho. “Suponho que perguntar também é orar”, foi a minha resposta empática. Sim, a dúvida pode ser perigosa, mas não ofende. Às vezes, aproxima. A fé não é irracional, logo, não tem medo de perguntas. Ao longo da vida, tenho observado que o silêncio arrasa mais que o desabafo.

A sensação de uma possível “indiferença divina” já afastou muita gente de Deus e da alegria. Enquanto muitos desistem, outros se tornam paladinos contra o pensamento religioso. A aflição aguda, a frustração avassaladora e o mal que escorre no mundo tendem a lançar qualquer esperança transcendente no banco dos réus. E é nesse litígio da alma contra a crença que a mente questiona: “Se Deus pode fazer todas as coisas, por que Ele não impede a ocorrência do mal? Se Deus é bom, por que há tanta maldade? Seria Ele realmente tão poderoso, ou tão bom? Ou será mesmo que podemos contar com Ele, ou que Ele de fato existe?”

Na obra do filósofo americano Alvin Plantinga, Deus, a Liberdade e o Mal, a argumentação é densa, mas as conclusões são claras. Para Plantinga, não há inconsistência ou contradição na crença religiosa por insistir na existência de um Deus poderoso e bom, que domina o cosmos onde também há mal. Não deixa de ser uma reanálise da Teodiceia do filósofo alemão Leibniz — Ensaios de Teodiceia sobre a Bondade de Deus, a Liberdade do Homem e a Origem do Mal. Para o respeitadíssimo filósofo cristão Alvin Plantinga, o mal e o sofrimento presentes não tornam a fé inaceitável. Afinal, a regularidade do mal e a nossa incapacidade de explicá-lo concluem, sobretudo, que a nossa compreensão é limitada e não que o poder de Deus seja ineficiente ou que Seu caráter não seja benigno. “Por que supor que, se Deus tem uma boa razão para permitir o mal, os cristãos seriam os primeiros a sabê-lo? Talvez Deus tenha uma boa razão, mas essa seja demasiadamente complicada para que a compreendamos. Ou talvez Ele não a tenha revelado por qualquer outra razão.” Para Plantinga, o fato de os cristãos não saberem a razão pela qual Deus permite o mal não torna a crença imprópria ou irracional, só estabelece a certeza da ignorância humana. O objetivo de Plantinga é explicar que Deus é onipotente e bom; que a existência e operação do mal têm vínculos com o fator liberdade e que a nossa compreensão é limitada quanto à dinâmica de Deus na plenitude dos Seus desígnios.

É válido argumentar que Deus não oferece a Jó mais do que outras perguntas. “Quem prepara para os corvos o seu alimento quando seus filhotes choram?” (Jó 38:41). Jó derrama a sua angústia para buscar esclarecimentos, mas Deus o poupa de teologias, teleologias ou ontologias. Questiona Jó sobre assuntos como: “Explique-me o que sabes sobre a rotina de um jumento montês.” É falta de nexo? Não, absolutamente! É uma forma de mostrar que até a natureza óbvia tem complexidades que levarão Jó ao silêncio. É melhor guardar as sublimidades.

E, por faltar muitas respostas, é-nos oferecido Jesus, aquele que não garantiu imunidade contra o sofrimento, mas sim um caminho para atravessá-lo. Não apenas um caminho, mas um outro lado! Novo céu e nova terra, onde as faces dos salvos estarão enxutas de toda lágrima.

De Elie Wiesel a Alvin Plantinga, do Getsêmani ao Calvário, do sepultamento ao interminável e sombrio Sábado de Aleluia, há muito silêncio e “noites” obscuras. Todavia, assim como o galo percebe a chegada do dia antes do alvorecer, o Salvador se levantou no domingo quando ainda estava escuro, mas já não havia mais força na escuridão, pois a noite já havia passado. Eis a nossa esperança, eis a ressurreição, quando a noite e o pavor darão lugar à plenitude da Presença.

Pr. Ramon Márcio de Oliveira

Diretor-executivo adjunto da CBM

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